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A importância de uma cama

  • Taísa Baldissera | Arquiteta Especialista em
  • 6 de abr. de 2018
  • 4 min de leitura

Uma cama grande, como as que encontramos em hotéis de férias, faz parte das aspirações de muita gente!!! Nesse post, trazemos a tradução de um texto publicado ontem, dia 05 de abril, no site da revista Vanity Fair Espanha. O colunista Javier Aznar, autor do texto, faz um interessante link entre a obsessão por camas enormes e outros aspectos de nossas vidas.

Tempo aproximado para leitura: 05 minutos.

A importância de uma cama

Durante anos dormi em uma cama pequena. Se eu me esticasse todo, meus pés ficavam para fora. Tratava-se de uma cama espartana. Digna e sem alardes. Por isso, minha maior aspiração era ter uma cama grande. Uma cama de hotel. Dessas com travesseiros de tamanhos diferentes, feito Matrioskas. Uma cama onde fosse possível amanhecer na diagonal porque why not. Uma cama para virar cambalhota. Uma cama onde eu pudesse ensaiar minha própria coreografia de Love Yourself nas manhãs em que me sentisse inspirado.


“Algum dia comprarei uma cama enorme. E todos verão”, eu costumava repetir todas as manhãs em frente ao espelho do banheiro. E ensaiava minha risada de Doutor Maligno. Depois, ia para a ducha e me ensaboava com um sabonete especial para peles sensíveis porque nós vilões também temos direito de estar hidratados.

E esse dia chegou. Com o adiantamento de meu primeiro livro comprei a maior cama da loja. Uma cama entre enorme e ridícula. Cheguei a pensar que a transportariam em barco e enjaulada como se fosse o King Kong. Afundado na espiral de gastos, também comprei duas almofadas especiais. Atirei notas de dinheiro naquela loja de colchões como um rapper entrando na festa de aniversário do 50 Cent. Agora me conhecem como MC Visco elástico na cena underground dos móveis para casa.

A cama era tão grande que a logística de colocá-la dentro do apartamento foi complicada de ser resolvida. O vendedor havia comentado que era o modelo de cama que jogadores de basquete do Madrid costumavam comprar. Provavelmente, era mentira ou exagero, mas eu sorria orgulhoso, embriagado de satisfação. Finalmente, eu a havia comprado! Finalmente, eu teria minha cama XXL. Hoje faz um ano que comprei essa cama e todas as manhãs acordo encurralado no lado esquerdo, apegado ao criado-mudo, quase fazendo malabarismos para não cair. O resto da cama permanece intacta, arrumada, como se nada tivesse passado por ali. Uso aproximadamente 8% da capacidade da minha cama. Pareço minha mãe com seu iPad, que só usa para jogar Bridge. “Steve Jobs não morreu para isso”, eu digo. Suponho que o pessoal da Pikolin me diria o mesmo.


De vez em quando, na metade da madrugada, estendo um pouco a perna e sinto o frescor da zona inexplorada. Mas em seguida, de forma inconsciente, acabo voltando para minha posição natural de faraó em seu sarcófago, ocupando o mínimo espaço possível. É como se, de algum modo, eu continuasse dormindo com as dimensões de minha antiga cama na cabeça. Não havia me acostumado a ter tanto espaço. Sinto-me como o Sargento Brody em Homeland quando, após anos de cativeiro no Iraque, ao chegar em casa, prefere dormir no chão, perante o olhar atônito de sua esposa, a desfrutar da comodidade de sua cama.


Dizem que o corpo tem memória. O meu está bem consciente que foram muitos anos naquele berço para se deixar seduzir por uma cama king size qualquer. Custa romper com velhos padrões. E se já é difícil romper na hora de descansar, nem quero mencionar o quanto custa em outros âmbitos. No trabalho. Nos relacionamentos pessoais. Nas pequenas coisas do dia a dia.


Um amigo comprou um Smart para dirigir por Madrid. Quando me dava carona para o jogo de futebol, eu percebia quantas vagas ele dispensava onde poderia estacionar folgadamente. “Continuo pensando como se eu tivesse um carro grande”, disse-me. Nesse momento pensei que era o mesmo que acontecia comigo em relação à minha cama. Ou como ocorre com muitos em seus trabalhos; somos incapazes de detectar as novas oportunidades apesar de elas estarem em frente aos nossos narizes. Mesmo tendo feito o mais difícil: comprar uma cama, um Smart, estudar uma faculdade, trocar de trabalho ou de parceira. Somos escravos de nossos velhos hábitos. Como o escorpião da fábula.

Todos os dias se abre diante de nós um horizonte de novas possibilidades. Podemos mudar, provar e experimentar. Aproveitar oportunidades sem fim. Porém, no final, acabamos fazendo o mesmo de sempre, aprisionados ao lado esquerdo da cama. Em nosso canto da comodidade. Culpando por nossos males a conjuntura econômica, a situação social, os políticos, as nossas más eleições no passado e todos os pênaltis que não foram apitados. Queixamo-nos de tudo que não está em nosso poder, porém somos incapazes de mudar aquilo que está sob nosso controle. As pequenas coisas.


Temos internet banda larga a nossa disposição e acabamos sempre visitando o mesmo circuito de páginas, como um hamster na roda. Podemos comer em lugares novos, mas vamos sempre aos quatro que conhecemos por mera comodidade. Temos milhões de pessoas inspiradoras para seguir nas redes sociais e, em troca, preferimos viver o dia a dia de pessoas medíocres que não nos interessam, conhecidos com quem não temos nada a ver, apenas pelo fato de em algum momento termos firmado um contrato vitalício de amizade e fidelidade.

É ao que estamos acostumados. Conformamo-nos com a gratificação imediata do conhecido, ignorando as novas possibilidades que se abrem perante nós. Às vezes queremos mudar o mundo quando nem sequer conseguimos mudar a posição de dormir.

Porém, não convém subestimar a importância de uma cama. Há pouco li um discurso de um Navy Seal da universidade de Austin a respeito da importância de arrumar a cama todos os dias. A beleza que se encontra na disciplina de conseguir que esse microcosmos, que é sua residência, seja perfeito. Começar com essa pequena tarefa, por mais ínfima e intranscendente que possa parecer, e construir o restante do dia baseado na certeza de que temos o controle. Além disso, saber que, mesmo após o dia mais miserável, terá uma cama arrumada o esperando, mesmo que acabe usando apenas 8% da mesma.


Autor: JAVIER AZNAR

5 de abril de 2018 / 12:14

http://m.revistavanityfair.es/


 
 
 

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